Nem o frio, nem o gosto de calcário na água, nem os sotaques diversos para compreender um inglês todo carregado, nem a saudade. De todas as mudanças que tive que experimentar, a maior delas foi encarar a maternidade em terras estrangeiras.
Deve ser difícil mudar de país para todo mundo. Mas mudar de país com duas crianças pequenas é heróico!
Por mais que tenha tido planejamento, pesquisa, planos A, B e C, na prática foi tudo completamente diferente do imaginado. E quando chegamos pareceu que nunca antes tínhamos pensado em como seria a vida aqui com um bebê recém nascido.
A verdade é que pensamos, ponderamos, reformulamos. Mas a teoria é bem diferente da prática.
Em algumas outras publicações já comentamos: as crianças só têm direito a escola pública gratuita a partir do terceiro aniversário (e por 15 horas semanais! O que não “refresca” muito, na minha opinião…). É esse detalhe que faz com que a maternidade, o lugar da mulher e a primeira infância sejam completamente diferentes das nossas experiências anteriores no Brasil. E é sobre isso que quero falar hoje.
Essa fotografia está exposta no Museum of London na sala que conta um pouco mais como era a vida nas ruas de Londres durante a Era Vitoriana.
Na foto vemos uma mulher que trabalhava como cuidadora de crianças ( Childminder, como é conhecida essa profissão por aqui) enquanto as mães trabalhavam em outros lugares. Em troca do dia de trabalho, essas mulheres recebiam chá e pão. Essa foto foi tirada há 141 anos atras e essa dinâmica ainda é bastante comum em Londres e por outras cidades do país . Claro que hoje elas recebem um salário, um valor que é acordado por horas de trabalho – não mais uma xícara de chá e um pedaço de pão.
Vamos pensar como funciona a dinâmica econômica de muitas familias:
O salário mínimo em Londres é de £7,83 por hora;
Um almoço na rua (famoso meal deal que consiste em um sanduíche, uma bebida e uma fruta) sai por £3;
O transporte da zona 3 (onde moramos, por exemplo) para a zona 1 (onde estão concentradas muitas empresas e vagas de trabalho) sai por £8.
O valor cobrado por uma nursery na região onde moramos é de £80 por dia. Isso mesmo, por dia.
Fazendo uma conta rápida de cabeça fica bastante claro que em muitos casos simplesmente não compensa trabalhar quando se tem um bebê em casa. E é isso que muitas famílias acabam decidindo: um dos pais fica em casa, enquanto o outro trabalha para sustentar a família.
Parece que estamos falando dos nossos avos há 50 anos atrás, né? Mas a verdade é que essa é a realidade de muitas famílias por aqui (imigrantes ou não). E nossa família engrossa essa estatística.
Diferença salarial entre homens e mulheres no Reino Unido
No inicio de 2018 foram publicadas algumas pesquisas e documentos oficiais do governo sobre gênero, salários e horas de trabalho e há aqui mais um ponto que contribui para a minha reflexão sobre a maternidade: as mulheres ganham MUITO menos do que os homens (infelizmente não é uma exclusividade apenas do Reino Unido, né?).
De acordo com essa pesquisa, 41% das mulheres trabalham meio período, enquanto apenas 12% dos homens cumprem essa jornada reduzida.
Assim, a conta lá de cima fica mais simples ainda: as mulheres escolhem trabalhos meio período (para dar tempo de levar e buscar as criancas maiores da escola, por exemplo) ou simplesmente não trabalham (porque é óbvio que em muitos casos não compensa…)
Ao tentar compreender o abismo salarial entre homens e mulheres por aqui tive a noção do quanto essa sociedade é, também, extremamente machista. Ao sair para caminhar numa manhã qualquer a cena é sempre a mesma: mulheres nas ruas, nos mercados, nos parques, nas lojas… e tem até congestionamento de carrinho de bebê (não estou sendo irônica).
A diferenca salarial entre homens e mulheres define contorno das famílias.
A partir dessa realidade, muitos casais escolhem ter os filhos todos de uma vez só. Então é corriqueiro ver uma mulher gravida, com um bebe no carrinho e outro ao lado aprendendo a andar de patinete. A diferença entre eles é menos de 2 anos. Essa cena é muito mais comum do que pode parecer.
Portanto, durante esse período em que as crianças ainda não completaram 3 anos de idade, muitas mulheres ficam fora do mercado de trabalho apenas focadas na primeira infância dos filhos.
Eu fico me perguntando se esses anos fora do mercado não faz com que aumente ainda mais o gap entre homens e mulheres. e até mesmo entre mulheres que têm filhos em relação às mulheres que não têm. Fica aí a questão.
Ajuda do governo para famílias
É sabido que o governo ajuda os cidadãos de muitas maneiras por aqui, não? (Inclusive já escrevemos sobre isso aqui no blog).
As famílias que possuem crianças possuem prioridade ao serem selecionadas para benefícios e até financiamentos de imóveis, por exemplo.
Alguns exemplos dos benefícios disponíveis:
Child benefit: pago semanalmente £20,70 para seu primeiro filho e £13,70 a partir do segundo filho e, segundo consta no site oficial, serve para custear roupas, alimentacao, presentes de aniversario…
Child tax credit: se os pais trabalham um mínimo de 16h semanais cada um, passam a ter acesso a este benefício que ajuda a pagar até 70% do valor da mensalidade na nursery; (Essa pode ser uma opção bastante ponderada para que ambos pais estejam no mercado de trabalho. Mas ainda há a diferença de 30% do valor da mensalidade, que ainda é um valor alto e que compromete a renda da casa)
Housing benefit: uma ajuda do governo para complementar parte do valor do aluguel;
Council tax reduction: uma redução do valor pago do “IPTU” daqui;
Job seeker allowance: uma ajuda de aproximadamente £70 por semana para pessoas que estejam procurando emprego. Além do valor, há encontros quinzenais com um coach, palestras e cursos que ajudam a melhorar o inglês, reescrever o currículo, se preparar pra uma entrevista…
Existem, ainda, muitos outros benefícios que podemos aplicar como cidadãos europeus.
Ainda no site que gerencia e explica esses benefícios, encontramos essa tabela que explica suas responsabilidades de acordo com a idade do seu filho.
Ao analisar todos esses dados, compreendo que há alternativa para mães e pais que trabalham, mas me parece tão burocrático…
Além disso, eu acredito que as pessoas por aqui têm incorporada à cultura de cada família que é benéfico esses primeiros anos mais próximos aos pais (o que eu concordo absolutamente).
Assim há duas questões centrais nessa dinâmica toda (extremamente opostas):
1. Ficar 3 anos fora do mercado de trabalho pode ter um custo muito alto para a carreira do pai que ficou em casa (geralmente a mãe, como vimos);
2. A criança pequena tem um começo de vida com bastante segurança, desenvolvimento garantido e todo o seu tempo ao lado da mãe;
Aula de ginástica para mães
É preciso você ponderar o que vale mais a pena. Carreira? Maternidade?
A bem da verdade é que essa é uma questão social bem séria por aqui. Muitas famílias não encontram alternativas em como conciliar trabalho como cuidado dos filhos. Isso compromete renda, que compromete o quanto essas famílias podem pagar de aluguel e comida, que compromete a qualidade de vida. Além disso, há uma discrepância enorme entre os pais. Enquanto um está o tempo todo com o filho em casa – querendo estar na rua; o outro está o tempo todo na rua – querendo ser mais participativo em casa.
Eu não sei se foi o trauma que vivi ou é porque é realmente MUITO difícil esses primeiros três anos, mas sempre que perguntam a minha opinião eu digo categoricamente: eu não aconselho a vir morar aqui com bebês, mas se mesmo assim você vier, esteja preparado.
Camila é híbrida. Ouve Bach enquanto lê Ariano Suassuna. Cozinha muito bem enquanto ouve sobre Hannah Arendt no rádio. Cada quilômetro de distância longe de sua terra amada a fez mais brasileira ainda.
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2 comentários em “A maternidade, a primeira infância e o lugar da mulher”
Que Maximo esse texto! Realmente a maternidade por si só ja nos faz refletir muito, morando num outro país, fica ainda mais difícil! Obrigada por compartilhar as informações.
Dois anos de Inglaterra, e ano passado tive a mesma conclusão. Cheguei aqui achando que UK abraçava as mães e preservava muito a primeira infância. De certa forma, sim. Mas é muito mais uma consequência do país machista que é, do que o intento genuíno de preservar os pequenos perto da mãe. Tô esperando um artigo teu sobre as escolas, Camila!
Que Maximo esse texto! Realmente a maternidade por si só ja nos faz refletir muito, morando num outro país, fica ainda mais difícil! Obrigada por compartilhar as informações.
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Dois anos de Inglaterra, e ano passado tive a mesma conclusão. Cheguei aqui achando que UK abraçava as mães e preservava muito a primeira infância. De certa forma, sim. Mas é muito mais uma consequência do país machista que é, do que o intento genuíno de preservar os pequenos perto da mãe. Tô esperando um artigo teu sobre as escolas, Camila!
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